O jargão do protagonismo

Segundo uma certa mentalidade que tem se espalhado entre certas militâncias ou pretensas militâncias de gênero ou de etnia, a solidariedade e o diálogo são impossíveis. A solidariedade com uma bandeira que não lhe diz respeito diretamente seria um “roubo de protagonismo”. A discordância, mesmo que apenas parcial, seria um “silenciamento”. O direito de discursar sobre certos assuntos seria exclusiva dos indivíduos que tem uma “vivência”, a partir de um “lugar de fala” do “oprimido”, e a argumentação racional não passaria de um “academicismo”.

A primeira crítica que pode ser feita a essa mentalidade é que ela é contraproducente. Ou seja, ela pode até mesmo trabalhar inconscientemente contra a própria causa que estaria defendendo. Pois essa fraseologia interdita o debate aberto e afasta aliados, tornando antipáticas para amplos públicos a militância por causas que, no final das contas, são justas e importantes, e merecem apoio. Pior ainda, essa recusa em argumentar e contra-argumentar pode provocar um recrudescimento daquilo que combate (o machismo, o racismo, a homofobia, etc), ao interditar o debate, gerando crescente fragmentação e isolacionismo de militâncias de gênero e etnia.

A segunda crítica pode ser feita aos limites do conhecimento baseado na vivência individual. Não digo que a experiência pessoal seja desimportante, mas é uma fonte extremamente limitada de saber. É uma contradição gritante que um ativismo que se propõe a defender interesses de grupos oprimidos adote uma mentalidade subjetivista e individualista, rejeitando a necessidade de complementar essa vivência subjetiva com conhecimentos mais objetivos, o que exige um diálogo com a pesquisa científica. A mentalidade subjetivista e individualista apenas ajuda a legitimar a retórica dominante, segundo a qual todos os sucessos e tragédias são culpa de indivíduos.

Decorre desse subjetivismo uma série de consequências, uma delas a crença de que todos os que partilham uma “vivência” de “opressão” em comum tem exatamente os mesmos interesses objetivos, como se os gêneros e etnias não estivessem tão divididos em classes sociais, da mesma forma que as classes sociais estão divididas em gêneros e etnias. Assim, os problemas de negros, mulheres e homossexuais trabalhadores são esquecidos, supostamente em nome da defesa radical dos seus interesses!

Desprezando a discussão sobre mudanças estruturais, esses movimentos muitas vezes apostam em um “bom uso” de punições draconianas contra “opressores”. Esquecem três fatos objetivos importantes: i) a eficácia do direito penal é muito controversa, e não é raro encontrar efeitos perversos de punições e proibições que detonam reações em cadeia e ciclos viciosos; ii) entre os encarregados da aplicação das leis encontram-se muitos inimigos radicais dessas causas; iii) a lógica punitiva tende a recair com maior dureza exatamente sobre aqueles que são discriminados, pois os ricos e privilegiados contam com recursos para garantir a própria impunidade; iv) o uso de punições sumárias, ainda que simbólicas (como os “linchamentos virtuais” que alguns ativistas vêm promovendo), multiplicam o perigo de serem injustas (desproporcionais, contra inocentes, manipuladas por oportunistas, etc).

Fica então a pergunta: a quem realmente serve uma militância que rejeita a ciência social crítica, ignora a estrutura de classes, propaga o individualismo e promove e uma agenda repressiva?

9 comentários sobre “O jargão do protagonismo

  1. http://goo.gl/jhH9WC: “[…] Sem dúvida é essencial a solidariedade entre mulheres (ou negros), se acolhendo mutuamente, se reconhecendo e compartilhando os problemas que só elas (ou eles) sofrem e modos de se contrapor a eles. Porém, fechadas em si mesmas, isto é, enquanto lutas identitárias, elas são necessariamente punitivistas e como tais meramente reivindicam o reforço do aparato repressivo do Estado, quando não a repressão direta ganguista. Por exemplo, na prática o que o feminismo indentitário propõe para transformar a sociedade? Mais repressão. A repressão é a única praxis social possível das lutas identitárias. Não estou dizendo que elas poderiam exigir outra coisa fora a repressão, mas sim que não se pode esperar das lutas identitárias, enquanto tais, a menor possibilidade de ir além do status quo, no qual a repressão (recompensas e punições) é a única praxis possível.

    As mulheres são a esmagadora maioria dos que ganham um salário mínimo ou menos no Brasil. E são elas que são a maioria dos que continuam ganhando a mesma coisa pelo resto de suas vidas… Como tratar disso? Há duas maneiras. Uma é pela via identitária e consiste simplesmente em protestar por novas leis e por fortalecer ainda mais a repressão para implementá-las, “empoderando” ainda mais a classe dominante. A outra é pela solidariedade que surge pela confiança mútua entre homens e mulheres, negros e brancos, que é o único modo de romper o poder da classe dominante e seu aparato repressivo, confiança mútua fundada justo na dissolução de privilégios (de sexo, raça, etnia…), confiança na solidariedade dos outros se alguém sofrer essas violências identitárias. Obviamente esta é uma perspectiva de classe, de autonomia do proletariado. (Aliás, “privilégio” vem de “privus legis” – lei privada. )

    É claro que no contexto “dado” de desconfiança e competição generalizada em que sobrevivemos, nesta guerra de todos contra todos em que o apelo a uma violência ainda mais ameaçadora (gangue, gerente, polícia e/ou Estado) é sempre a única “garantia”, os identitaristas sempre argumentarão que é uma “ingenuidade hipócrita” esperar encontrar solidariedade e confiança mútua entre os proletários, ou esperar que eles recusem suas migalhas de privilégios (“meritocracia”). Os identitaristas tem razão, pois diante do sofrimento da violência identitária, não há tempo para esperar a solidariedade ainda hipotética de classe, não restando saída exceto apelar à classe dominante (ao poder) como único recurso disponível para reduzir o sofrimento.

    Porém, esse contexto, esse status quo, é insuportável e absurdo. Verdadeira hipocrisia é aceitá-lo. É preciso buscar tornar materialmente sem sentido o apelo à “violência mais ameaçadora” (gangue, gerente, polícia e/ou Estado). E, para isso, não se trata de defender “fatos”, mas de afirmar uma posição (que não é uma “militância” ou “trabalho de base”, que sempre desembocam em ganguismo, mas, pelo contrário, relações de igual para igual no cotidiano, na rua, no trabalho, no ônibus): favorecer a solidariedade, a confiança mútua, a recusa à privilégios, propor “a cada um conforme suas necessidades” contra a competição (minando a correspondente “meritocracia”, método de dominação daqueles que detém a “violência mais ameaçadora”, ou seja, a classe dominante), ou seja, favorecer tudo que contribua para a autonomia do proletariado, e o “desapoderameno” da classe dominante… ” http://goo.gl/jhH9WC

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  2. ~A solidariedade com uma bandeira que não lhe diz respeito diretamente seria um “roubo de protagonismo”. A discordância, mesmo que apenas parcial, seria um “silenciamento”. O direito de discursar sobre certos assuntos seria exclusiva dos indivíduos que tem uma “vivência”, a partir de um “lugar de fala” do “oprimido”, e a argumentação racional não passaria de um “academicismo”.~

    Concordo com as ideias do texto. Gostaria apenas de deixar claro a existência real do silenciamento, não da forma irracional que vem sendo colocada pelos movimentos pós-modernos.
    O problema parte dos dois lados. Os movimentos por minorias muitas vezes não aceitam diálogo, mas outros setores, inclusive da esquerda, também não escutam realmente o que os indivíduos desses movimentos têm a dizer. Isso não quer dizer que a militância deva ser blindada de críticas em nome do lugar de fala, mas sim que certas experiências diferenciais devem ser levadas em conta e não podem ser ignoradas em nome da universalidade, como se o fim do capitalismo, por exemplo, fosse dar necessariamente fim ao sexismo ou ao racismo.

    Por fim, muito interessante o texto. Precisamos pensar mais a respeito desses aspectos e encontrar uma maneira viável de conciliar interesses, não de forma subjetivista e nem de forma identitária ou liberal, mas de forma dialética e materialista.

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  3. Achei fraco e tendencioso o texto.
    É lógico que o conhecimento empírico das “minorias ” deve dialogar com o conhecimento acadêmico sociológico. Mas a luta por leis contra abusos sexistas e racistas não é uma busca da “punição” e sim da conscientização de que estes atos caracterizam crime!
    Leis só representam o que a maioria da sociedade já aceita como certo!
    Quanto a falta de personalidade de certas pessoas em tomar um posicionamento sobre determinado assunto! Isto está ligado diretamente com a necessidade de aceitação, medo de perder privilégios!
    A conscientização e a educação são as forças básicas para qualquer mudança!

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    1. Ai que VC ta errado mano… As minorias buscam por saídas punitivas sim visto a Maria do rosário comemorando a lei do feminicidio, um dos maiores paradoxos da esquerda nesses últimos anos tem sido isso

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      1. Quando a educação e a conscientização se tornam inviáveis, as saídas punitivas são, sim, uma saída bastante viável. Principalmente quando a manifestação de preconceitos e estigmas se dão de maneira subjetiva. Quando esses estigmas já estão tão entranhados na cultura de um povo ou de uma sociedade, a ponto de, muitas vezes, passarem desapercebidos.
        Como o caso, por exemplo, da Lei do Feminicídio. De modo geral (vou repetir: de modo geral) as vítimas de violência não encontram meios legais e legítimos de se defender. Por exemplo: mulheres estupradas, frequentemente são culpabilizadas (inclusive pela polícia que deveria defendê-las) por terem sido violentadas. Piadas contra negros são consideradas normais, ou inofensivas… nesse cenário, fica dificil para as vítimas, encontrar apoio em qualquer esfera. Nessas situações, promulgar leis punitivas servem pra “forçar” a sociedade a acatar uma mudança de mentalidade e de postura.

        O Texto do blog me soou um bocado mimizento. Concordo com alguns pontos mas, de modo geral, não se aplica.
        Se a gente vivesse numa sociedade de pessoas estudadas, e não num país de analfabetos funcionais, talvez fosse mais fácil ter esse diálogo equilibrado e crítico em todas as instâncias (principalmente auto-criticos).
        Não concordo com a postura de certos grupos ou pessoas de tentar inviabilizar argumentos dando a carterada do lugar de fala, mas na maior parte das vezes, esse é o único argumento viável pra conseguir abrir um pouco a guarda de quem se apega a posicionamentos conservadores ou preconceituosos. A evocação do lugar de fala, apela pra empatia das pessoas.
        Se o mundo fosse perfeito e todomundo fosse absolutamente empático, provavelmente o argumento da vivência nunca precisasse ser levantado.

        Mas não é nesse mundo que a gente vive, né? Sejamos francos.

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  4. Também achei tendencioso. A começar que o autor não assina, ou autora?
    Depois que me parece haver uma tentativa desonesta de confundir os sentidos. Não acho que o problema seja agir agressivamente contra o academicismo, contra a produção científica, que tem ainda, mesmo na atualidade, um número maior de homens em sua representação, brancos, heteros… o problema não é este, não há recusa cega e extremista a isso, mas consciente de que apesar de ser útil todo conhecimento crítico, não se deve esquecer de quem o representa, não se deve sobrepor ao que de fato essas minorias vivem, porque é fácil ser portavoz científico. Mas não, não tem mesmo como sentir os efeitos de ser negro, gay, mulher, gordo… Portanto, não acho que há exclusão ao conhecimento, à teoria social crítica ou enfim, mas sim, à sua sobreposição. É preciso aceitar seu papel, mas não torná-lo superior à vivência das minorias, não cabe mesmo. Tendencioso.

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